O último Grimm: a aventura prometida
O reencontro do maravilhoso-fantástico
Álvaro Magalhães é o autor por excelência da palavra justa, da beleza preservada, da ternura sentida, do apego às coisas pueris e do humor construído com o cuidado de quem conhece o sabor literácito da própria fruição e do sentido permutável da expressão poética.
Muitos são já os textos – narrativos (contos, livros seriados, ou romances jovens), mais ou menos extensos; dramáticos ou poéticos –, que confirmam a relevância discursiva do acervo literário do autor, onde o imaginário, trabalhado de forma consciente, é continuamente estimulado pela adopção de imagens cujos valores humanos fundamentais se dão a ler.
Tal permite-nos asserir que a escrita de A. Magalhães acusa, por um lado, a proeminência do seu olhar caleidoscópico, numa peculiar apreensão do mundo; por outro, que o seu trabalho, no “laboratório da escrita”, confere a relevância do intertextual conotativo, hoje mais do que nunca solicitado.
A epígrafe solicitada a André Breton: “O imaginário é tudo aquilo que tende a tornar-se real” abre, de par em par, a história que o autor se propõe contar e anuncia que O Último Grimm é uma narrativa onde a percepção estética assegura a abertura ao imaginário individual do leitor, que é convidado a participar das mais belas metáforas da essência do próprio do Ser, do tempo e do espaço numa intenção clara de cumprir o valor da imaginação criadora no reencontro com o outro.
Eis, assim, mais uma belíssima obra, a segunda do autor, pertencente à «Colecção Jovem Romance», estreada pelas Edições ASA, em 2004, com a magnífica narrativa A Ilha do Chifre de Ouro (Magalhães, 1ª ed. 1998, Dom Quixote), que efectiva tudo o que já foi referido.
Impõe-se, desde já, uma breve reflexão sobre a capa, excelentemente ilustrada por Pedro Pires, cujo título se compromete com a existência da descendência dos famosos irmãos Grimm. A intenção autoral parece clara e concluímos, mais ou menos convictos, que esta é uma obra cuja temática se reporta aos Grimm, portanto ao seu trabalho de recolha e recriação de contos e lendas, e que propõe, à mistura, a história de um último descendente. Contudo, a ilustração, cujos contornos tendencialmente míticos não parecem adequar-se a um livro desta natureza, obriga a que nos questionemos sobre a existência de um Unicórnio na capa de um livro que, à partida, irá falar dos irmãos Grimm e da sua descendência.
A sinopse resolve o mistério e, numa atitude de puro esclarecimento, dirige-se ao leitor afirmando este ser um livro que irá contar a história dos irmãos Zimmer, descendentes dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm; que estes irão descobrir imensas coisas, como os segredos do tetravô, Wilhelm Grimm, e que William – o herói da história – é um Grimm porque é «aquele que vê» (2007: 46). Depois, adoptando já uma atitude mais provocadora, esta convida o leitor à reflexão. Informa-o que dentro desta narrativa vão surgir outras histórias, povoadas por seres maravilhosos e fantásticos, tomados emprestados às histórias de outros tempos, onde também vai figurar o imaginário trabalhado do autor com «ladrões de tempo»; «uma pedra que fala»; uma dor esquisitamente «cor-de-rosa», e ainda os necessários artefactos fantástico-maravilhosos para que a história fique completa.
Os mais resistentes concluem, contudo, que o título e a sinopse nada parecem trazer de novo. Afinal tudo indica que é uma história que se baseia na história dos Grimm. Desengane-se o leitor menos atento e, se porventura está a pensar que este é mais um livro cuja temática se equaciona entre o reconto da aventura literária dos Grimm e as façanhas de um herói destemido que vai enfrentar criaturas fantásticas e medonhas para repor a ordem, então é-me necessário citar uma das frases da sinopse: «abr[a] este livro e ficar[á] a saber» como efectivamente se faz uma história para jovens leitores reflexivos que gostam de ser tratados como tal.
O leitor que conhece os propósitos estético-literários de Álvaro Magalhães sabe que a criação desta narrativa, de carácter bem juvenil, se dita numa outra leitura bem mais complexa que é a do apego ao belo e ao essencial e, sobretudo, à do respeito por quem lê de verdade. Trata-se, aqui, de poder ter em mãos uma obra literária que presentifica a imagem da vida, e onde a essência do pleno se metamorfoseia tomando forma nas diferentes emoções do leitor que é inevitavelmente desafiado a prosseguir a par de um imaginário maravilhoso e fantástico.
Provocado, desde o primeiro capítulo, o leitor juvenil é convidado a participar na aventura de William e do seu irmão Peter, que mesmo sem ter o dom da visão – porque não é um verdadeiro Grimm – também participa assertivamente nas experiências do irmão. Se um vê e escuta, o outro consegue ouvir, o que deixa adivinhar a divisa: «“Os dois somos um”» (2007: 12; Cf., 131).
Dado que o lado de cá e o lado de lá adicionam e multiplicam acontecimentos novos ao instituído como normal, vão cruzar-se nesta grande história de histórias personagens ficcionais dos contos do imaginário maravilhoso do “Era uma vez…”. Deparamo-nos, então, com a terra do «Povo das Histórias», onde vivem, entre muitos outros, a bruxa da «Casinha de chocolate»; as diferentes fadas dos contos feéricos; o Corvo da fábula de La Fontaine; os amigos do Ursinho Puff: Cristóvão Robin, Inhon, o Coelho, o Porquito, o Mocho, o Tigre; Peter Pan; Pinóquio, a Rainha de Copas e o sempre desenrascado Gato das Botas, com quem William vai travar conhecimento logo de imediato.
Típico da tónica pessoal e do hedonismo da escrita de A. Magalhães, a personagem surge sem qualquer apego à história contada por Charles Perrault, porque está onde deve estar, isto é, na terra das histórias. Aqui, como o descobre William, «a imaginação de alguns encontra a sua vida própria» (2007: 215), o que permite a estas personagens participarem em outras histórias. Por isso, o Gato das Botas se propõe ajudar William a descobrir o «Reino da Rosa», não deixando, porém, de se queixar das suas botas, que contrariamente ao que conta a história que todos conhecemos, nesta terra das histórias, «têm as solas gastas e já não são o que eram» (2007: 214).
Páginas adiante, encontramos o adorável Ursinho Puff, (Winnie the Pooh), criado em inícios do século XX por Alan Alexander Milne, e que fez as delícias de todos nós (os mais velhos). Não querendo desintegrar esta deliciosa personagem do seu habitat natural, A. Magalhães refere-se a Joanica-Puff como se este continuasse, desde sempre, na «Floresta dos Cem Acres», sempre atarefadíssimo à procura de mel; muito distraído; adoravelmente ingénuo; dotado de uma enorme humanidade e sempre preocupado e atencioso para com os outros. Reforçando a noção de que nem tudo o que parece é, Joanica-Puff surge-nos, pela mão do escritor, admiravelmente astuto nos diálogos que mantém com William. Mais uma vez, este reconhece a verdade do essencial das coisas elementares e afirma, convicto, que «as coisas são como são e raramente são como não são», e valoriza as preocupações imediatas, pois as menos mediatas são para ser pensadas no «Recanto Pensante, que é o sítio onde [ele tem] grandes pensamentos acerca de nada. E de tudo também» (2007: 235). Claro que a vulnerabilidade desta personagem não deixa de nos comover, mas em O Último Grimm, o Ursinho Puff revela-se muito assertivo nas suas reflexões, o que remete o leitor para a introspecção do que é, de facto, a essência do puro e a dádiva ao outro, sem falsos manejos ou filosofias ocas. A homenagem devida à personagem em questão é de um reconhecimento enternecedor. Parabéns ao autor!
Já com os pés bem assentes na terra das histórias de encantar, no «Reino do Ar», encontramos a implacável Rainha de Copas que cobre de ameaças o «Reino da Rosa» do qual se apossou, sempre protegida pelo seu enorme exército de cartas e do seu fiel Valete de Copas. As manias surpreendentes desta personagem, que usa de uma linguagem própria, colocam-nos perante o maravilhoso-fantástico, onde desde logo nos embrenhamos num apetitoso e desafiador jogo lexical e fonético, já típico da escrita de A. Magalhães, e que permite, aqui, a aglutinação de palavras para que se poupe tempo, não vá a rainha cansar-se! A eloquência do Rei de Copas, por sua vez, é atiçada pelo humor situacional que retrata a ignorância do Terno de Ouros que desconhece, por exemplo, a palavra “despautério”, que nada mais é do que uma «palavra dos Sombras que quer dizer “despautério”», como lhe explica o Duque de Espadas, ou ainda a palavra “excruciante” que acaba por ser definida como uma «excrussão que acaba de repante», isto é «de repente» (2007: 274).
A Alice não está presente, nem surgem as típicas transformações físicas desta personagem, mas a pitada engenhosa de um certo nonsense presencial na obra proporciona momentos – se não de boa disposição, pois é difícil não imaginar as cenas descritas sem rir – de saudade, de reflexão e/ou de descoberta para os leitores mais jovens que ainda não tiveram a oportunidade de conhecer a tipicidade deste género da literatura. Agradável também é detectar que William se revela capaz de participar, confiantemente integrado, num mundo de adultos e ser muito eloquente, permitindo vários estágios de comunicação entre ambos (Cf. 2007: 257-278).
Quem, desde cedo, esteve ou está em contacto com as obras de A. Magalhães sabe como este «brincador» de palavras mistura na sua paleta artística, o insólito e a provocação, o carinho e o engenho, criando as cores falantes que usa para escrever os seus textos, proporcionando momentos absolutamente profícuos onde o discurso humorístico se prende ao da imaginação criadora, bem estimulante para o seu público infantil, juvenil e adulto.
A história não fica por aqui e, como é devido, o leitor, que aceitou desde o início o «pacto ficcional» com o autor, prossegue, a par e em cuidados, a sua aventura com William, e entra num mundo onde existem ciclopes, ogres, fadas, silfos, ondinas, duendes, sereias, unicórnios e criaturas das trevas como dragões alados e simorgues, retratado como uma «ave medonha e portentosa, com quatro metros de envergadura [com] três olhos (…) e dois pares de asas de penas negras e lustrosas que usava separadamente» (2007: 299).
Não faltam ainda as personagens do imaginário autoral, como os «Papaletras», que aparecem na tenebrosa «Floresta Viva» e que são personagens que confirmam o apego à brincadeira sonora, pois elas são propícias em provocar a confusão: «comem palavras no ar e mudam o sentido do que dizemos (…). As minhas frases emagrecem, digamos assim, antes de chegarem ao teu ouvido. Eu digo “árvore” e um Papaletras come o “R”, o “O” e o “R”. O que fica? Ave» (2007: 293), como explica o duende Fric. A «Criança Terrível» é, sem dúvida, a personagem mais repugnante deste maravilhoso-fantástico criado pelo autor, porque não é a criança terrível do nosso real empírico. É uma criança disforme e repugnante que se alimenta do tempo que nos rouba quando o desperdiçamos ou nos lamentamos pela falta dele (Cf. 2007: 136-137; 312); que vive «num mundo de trevas»; tem perto de «duzentos e cinquenta anos dos [n]ossos. Ou mais tempo (…)» e só celebra «não-anos, que são anos que não se fazem» (2007: 313).
Neste mundo de fantasia e de cor, não faltam, contudo, personagens bem reais, como os próprios irmãos Grimm «que eram descendentes de um ramo dos Zimmer» (2007: 94) o «Primeiro Zimmer», ou melhor «o Primeiro depois do Primeiro» (2007: 97), como conclui William.
Perpassam ainda e de modo singular as presenças de personalidades do nosso real histórico-factual que já pertenceram ou ainda pertencem ao mundo da arte e da literatura, como William Wordsworth, que defendia já em finais do século XVIII que “a criança é pai do homem”; Mark Twain, considerado por William Faulkner o primeiro escritor verdadeiramente americano; Charles Dickens; Francis Bacon; Charlie Chaplin, para apontar nomes ligados ao passado. Surgem, contudo, nomes contemporâneos como o de Mick Jagger, o «mítico vocalista dos “Rolling Stones”» (2007: 168) e de Zadie Smith, que proclama na sua obra a problemática do multiculturalismo racial.
Ora, parece-me que podemos asserir, convictos, que os ingredientes para o enredo da história estão registados na permanência do espanto que se confirma numa homenagem ao maravilhoso e ao fantástico, num elogio franco aos jovens curiosos e resolutos de hoje.
Usando de uma imaginação essencialmente criadora, A. Magalhães justapõe de forma suavizante o real e o fantástico, o que nos permite aceder de forma natural a um imaginário identificativo. Tal torna a obra muito agradável e passível de uma leitura de lazer ou de uma outra mais reflexiva, pois deparamo-nos neste romance jovem com a demanda do sentido amplo da própria existência. Relembre-se, por exemplo, a imagem da morte anunciada, ou da própria cosmogonia, retratada na figura dos «Mendigos de energia» que, por deixar de participar de outras histórias, estão confinados ao «apagamento» (Cf., 2007: 266)
No acesso às leituras plurais desta narrativa do “Era uma vez…”, surge-nos o humor sossegado e adequado, traço habitual do autor, que usando de factores históricos se acerca ainda de referências socioculturais importantíssimas para os jovens leitores, possibilitando-lhes um enriquecimento enciclopédico sem que nada haja de maçador ou enfadonho.
O cunho original da obra, em concomitância com a sua intertextualidade, propõe a reposição do equilíbrio e a concepção de um happy-end e que o autor, num certo tom de brincadeira, retrata no quadragésimo sexto capítulo, intitulado: «Como nos livros», pois após a árdua aventura do herói tudo deve acabar bem. Ironia ou simples elogio ao belo?
In O Primeiro de Janeiro, de 23 de Julho de 2007