A Vila dos Tecidos: uma saga de compromissos
Em A Vila dos Tecidos, de Anne Jacobs, publicado pela Planeta Editora, o leitor depara-se com a Alemanha do início do século XX, mais precisamente em 1913, e vai conhecer a família Melzer. Uma família que se constituiu através de um casamento arranjado entre uma jovem da nobreza – Alicia Von Maydorn –, que terá de casar com o filho de mestre-escola que, por mérito próprio, se tornou num grande industrial têxtil. Note-se que Alícia teria mais de vinte anos e já seria considerada, no meio onde se movia, «uma solteirona», logo o casamento com Johann Melzer era a sua tábua de salvação e da família. Mas, e isso é notório na obra, trata-se de um casamento feliz, respeitoso e o casal vai ter três filhos Katharina, Elisabeth e Paul que vão ser as personagens à volta das quais a diegese se vai moldar, saltando como não poderia deixar de ser para os restantes livros.
O tecido ficcional de A Vila dos Tecidos teria de ser diferente caso a autora obedecesse cegamente aos ditames sociais da época, mas Anne Jacobs vai iluminar/ enriquecer a história familiar dos Melzer, com uma amizade e um amor que se julgariam impossíveis, mas que a escrita da autora torna reais, mesmo se traz para a intriga alguns clichés passíveis de um new adult romance, pois a jovem desafortunada e socialmente desfavorecida vai casar, por amor, com o jovem patrão.
É igualmente o mundo das governantas, fiéis guardadoras da família que servem, cujo talento na organização da casa permite geri um exército de criados e criadas que dependem mais delas do que da vontade dos seus próprios patrões. E esta obra é fabulosa na descrição desse mundo paralelo, onde as traições, invejas, intrigas, disputas, sobretudo entre as criadas da casa, nos reportam para uma época de grandes dificuldades económicas por parte daqueles que serviam as famílias ricas, abastadas, por vezes, intocáveis. Contudo, compreende-se muitíssimo bem, nesta obra, que, embora essa seja uma das realidades da época, no palacete dos Melzer, em Augsburgo, o trabalho dos criados é valorizado.
Encontramos também o mundo dos e das operárias que trabalham nas fábricas. Note-se que estamos na primeira fase da Revolução Industrial, considerada a da máquina a vapor. Logo, por um lado, da riqueza proveniente da produção e comercialização dos tecidos, mas, por outro, das dificuldades sociais e económicas daqueles que trabalham nessas fábricas. Em A Vila dos Tecidos, ficamos a par da realidade daqueles que trabalham, são remunerados consoante a vontade dos seus patrões, não têm direitos trabalhistas quase nenhuns e se submetem às vontades daqueles que mandam e que nem sempre são os proprietários dessas indústrias.
Portanto, neste sentido, deixo um bem-haja a esta romancista de renome que nos habituou a contactar com romances e sagas muitíssimo bem escritos, cuja intrigas nos prendem da primeira à última página.
As filhas da Vila dos Tecidos, o segundo livro da saga, é uma história envolvente que nos coloca num período temporal de sensivelmente um ano, 1916-17 onde muita coisa vai acontecer, até porque a Alemanha está em guerra – na Primeira Grande Guerra, e os homens têm de abandonar o conforto das suas casas para servir a sua pátria.
Percebemos de imediato pelo título que este 2º volume irá narrar a história das filhas do casal Melzer: Katharina, Elisabeth, mas também de Marie, que já é casada com Paul Melzer, e acaba de ser mãe. A família aceita-a muito bem e trata como filha. Se no primeiro livro, a descrição dos espaços, como a vila de Rothburne, a fábrica, as ruas, a mansão, o bairro pobre do outro lado da cidade, é muito realista, levando-nos a uma quase sinestesia emotiva, porque vemos e sentimos, no segundo livro, as descrições são orientadas pela escritora para que vivamos o que se passa nos diferentes espaços e com as personagens.
A caracterização das personagens é feita com o propósito de nos comovermos com elas, pois, quando nos apercebemos, já estamos envolvidos nas suas vidas e nos seus dramas pessoais, torcendo para que consigam ultrapassar as dificuldades e tenham sucesso. Marie é, sem dúvida, a personagem mais entusiasmante, embora Kitty também seja uma lufada de ar fresco na diegese pela sua irreverência. Marie é a transformadora, a que se adapta às situações com as quais se depara, e é um exemplo vivo de determinação e persistência, nomeadamente na forma como vai conduzir o negócio da família, pois o sogro terá de afastar-se porque está doente. Resoluta, vai pôr em prática os seus parcos conhecimentos e fazer tecido com papel e cartão, pois deixou de haver algodão para as fábricas de tecelagem. Como é evidente, Anne Jacobs conduz o leitor à reflexão, pois este depara-se com situações de grandes dificuldades económicas, inclusive na família Melzer. Os Melzer, que julgavam como todas as outras famílias que a guerra duraria uns parcos meses, veem-se privados do filho durante anos, pois ele vai ser um prisioneiro de guerra; veem o andar de baixo da sua mansão transformado num hospital militar; o seu jardim transformado uma horta, pois as flores não alimentam ninguém; deparam-se com a escassez de alimentos, porque eles não existem – não se produz, logo não se vende, por consequência, não há bens essenciais e não há dinheiro; o algodão escasseia de tal forma a produção de tecidos tem de ser alterada.
Ao longo da narrativa, surgem-nos, é um facto, algumas descrições demasiado pormenorizadas e continuam a surgir alguns clichés do New Adult Romance, mas que não se aponte o dedo à obra por isso. Mesmo sabendo que descrever não é narrar, muitas vezes quando escrevemos temos a preocupação do pormenor para que haja um compromisso de verosimilhança e isso aqui é perfeitamente aceitável. Mais uma vez, a autora demonstra um elevado domínio estrutura narrativa, mantendo toda a diegese num ritmo que vai surpreendendo o leitor à medida que a sua leitura avança.
A Herança da Vila dos Tecidos é o terceiro livro de uma saga que se vai construindo de forma a vincular o leitor à história da família Melzer. Cabe-me dizer que Anne Jacobs é, mais do que nunca, uma escritora cuja intenção ficcional se prende nos pormenores da vida quotidiana das suas personagens e fá-lo com alma, fazendo com que nos embrenhemos nos meandros do palacete da família, da casa onde vive Elisabeth, da fábrica, do atelier de Marie, enfim, de todos os espaços imaginários de Rothburne de que se faz esta diegese. E isso faz dela uma reconhecida contadora de história.
Neste livro, é a vida mais detalhada das personagens, que já conhecemos, que nos é apresentada, com o regresso de Paul, as vivências das irmãs e da cunhada, da matriarca da família, que já enviuvou no final do segundo livro, dos criados, da governanta. E este composto extremamente verosímil provoca no leitor a tal sensação de familiaridade e empatia, pois, conhecemos efetivamente as personagens e os seus tiques pessoais, as suas vivências.
Com o regresso da normalidade à mansão dos Melzer, também nos são apresentadas novas personagens, como a irritante percetora Serafina Dobern, que inferniza a vida das crianças e tenta, a todo o custo, tirar partido da sua presença junto de Alícia Melzer, que a empregou na sua casa por pena e uma quase obrigação social (note-se que a guerra alterou a vida de muitas famílias, tendo muitas pessoas de sujeitar-se a trabalhar na casa daqueles que recebiam antes). Claro que esta personagem surge para adensar a intriga e complexar a relação entre Paul e Marie que se distingue, numa sociedade ainda muito tradicional, pelo seu trabalho como estilista, tendo inclusive um atelier de alta costura. Ora, percebemos facilmente que Anne Jacobs quer iluminar os espaços sociais e familiares, pois, agora, fala-se de uma outra moda – a dos cabelos curtos e dos vestidos acima da barriga da perna, das unhas pintadas, do rímel e das bocas maquilhadas.
E é disso que também se faz A Herança da Vila dos Tecidos, pois Marie destaca-se como uma mulher independente e verá o mérito da sua mãe reconhecido pela sociedade, enquanto artista plástica. A história desta personagem é, a meu ver, um elogio a todos os artistas plásticos do início do século XX que viveram e morrerem na miséria e cuja obra só foi aplaudida após a sua morte.
Continuamos a verificar que, neste livro, o ritmo que encadeia de forma salutar, porque natural e sequencial, os diferentes momentos da história, continua a ser uma das preocupações da autora, e isso, efetivamente, prova o seu total domínio da estrutura narrativa. Temos, portanto, uma narrativa bem construída, que nos apresenta personagens bem construídas que se movem numa Alemanha a tentar recompor-se das indeminizações impostas pelo Tratado de Versailles.
Regresso à Vila dos Tecidos é o quarto livro da saga Vila dos Tecidos que nos leva, outra vez, para o mundo familiar da casa, confirmando-se a relação entre o upstairs-downstairs própria das grandes mansões e das famílias abastadas e empoderadas dos inícios do séc. XX. A normalidade tenta voltar à família, sobretudo com o regresso de Marie ao lar. As crianças crescem, os criados vivenciam tudo o que se passa à sua volta, as personagens femininas admiram-se e apoiam-se nas suas reconciliações e/ ou divórcios. Mas nem tudo corre bem, pois a fábrica que sustenta os Melzer e os empregados está com enormes dificuldades
Paul, os seus encarregados e o seu cunhado Sebastian, entretanto contratado e protetor dos mais desfavorecidos, fazem o possível e o impossível que tudo corra pelo melhor na fábrica de tecelagem, esta volta a passar por agravos capazes de a fazer falir e dar a fome aos que dela dependem.
É um livro que aborda como nenhum dos anteriores as questões sociais e políticas de uma Alemanha dependente, fustigada pelos encargos a pagar aos países que invadiu. Percebem-se claramente as alusões a um novo governo e são-nos já anunciadas situações contra os judeus que habitam na vila. A intriga mexe nesse sentido podendo, até, estar a anunciar um quinto livro. Quiçá?
É esta a obra da saga que talvez melhor nos reporta para as dificuldades económicas do país que não se alteram desde o segundo livro: empresas e lojas encerram de vez as suas portas, a moeda desvaloriza a olhos vistos, famílias ricas têm de vender os seus bens, deixam de pagar as suas contas, como, por exemplo, as abastadas clientes do atelier de Marie que terá de fechar as suas portas. À volta da mansão dos Melzer acontecem falências de todos os tipos e a família vê-se também na eminência de ter de vender a sua casa de família. E são estas dificuldades que fazem com que surja, de novo, o voluntarismo das mulheres, bem representado no comportamento de Marie que terá, de novo de tomar as rédeas da fábrica devido à doença do marido.
Neste último livro, os filhos de Marie e Paul que conhecemos desde o segundo livro, afirmam-se com dois adolescentes promissores: Leo é um jovem pianista promissor, cujas composições são elogiadas por Strauss e Dodo é a única que consegue pôr de novo os teares a trabalhar, salvando a fábrica do pai da ruína. Portanto, eis-nos perante a felicidade de uma família recomposta pela vontade e iniciativa de todos que fazem a mansão dos Melzer.
Os quatro livros merecem-me entre 4 a 5 estrelas, sendo que, para mim, os melhores são o primeiro e o último, portanto parabéns à autora.